Temístocles da Graça Aranha esteve na Kristallnacht
“Sob o grosseiro
pretexto de vingar a morte de um jovem secretário da embaixada alemã em Paris,
os nazistas, dando mais uma prova das violências a que são capazes, investiram
em massa, na madrugada de 10 (de novembro), contra todas as lojas pertencentes
a judeus.”
Temístocles da Graça Aranha —o encarregado de negócios do
Brasil em Berlim— havia acabado de testemunhar Kristallnacht, a Noite dos Cristais,
que completa 81 anos. Seu relato confidencial ao Itamaraty, desde a primeira
frase, não deixava dúvidas sobre a gravidade dos acontecimentos —nem sobre a
posição de Graça Aranha diante da barbárie nazista.
No centro comercial de Kurfürstendamm, o diplomata nascido
no Rio viu a depredação das lojas de judeus. “Policiais inertes assistiam ao
espetáculo degradante com olhos benévolos e pareciam lastimar não participarem
dos saques.”
Graça Aranha notava, ainda, o triunfo do império da mentira:
Goebbels exaltava a reação “espontânea” da multidão, embora claramente se
tratasse de uma operação coordenada do Partido Nazista.
Das 12 sinagogas de Berlim, três escaparam dos incêndios
—não por piedade, relatou, mas porque o fogo ameaçaria casas vizinhas de
nazistas. Bombeiros deixaram arder os templos religiosos, enquanto o
“populacho” disputava símbolos judaicos como “troféus heroicos”.
“Milhões de pessoas gozavam bestialmente esse espetáculo
único no século 20, numa das mais cultas capitais da Europa, que se ufana em
ser um grande centro da inteligência do homem.” O nazismo tentava
“sistematicamente destruir” qualquer resistência, explicava. Para Hannah
Arendt, a Noite dos Cristais foi o marco inaugural do período totalitário
nazista.
Antes, pensava-se que judeus viveriam —ainda que como
cidadãos de segunda classe— na Alemanha. Kristallnacht revelou que o objetivo
era, afinal, obliterar a presença judaica por onde reinasse o Terceiro Reich.
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Pedestres passam por vitrine destruída após ataques da Kristallnacht, em novembro de 1938 - |
Noite dos Cristais
Havia poucos “israelitas brasileiros” na Alemanha, mas Graça
Aranha trabalhou para resguardá-los. Ele teria sido o primeiro chefe de missão
em Berlim a solicitar, ao Ministério de Assuntos Estrangeiros, proteção a seus
judeus nacionais. Consulados brasileiros no país receberam ordens suas para
investigar a situação e cuidar de judeus com nacionalidade do Brasil.
Manuel Bandeira escreveria, anos depois, um poema ao amigo,
“Temístocles da Graça Aranha”: A aranha morde. A graça arranha. / E vale o
gládio nu de Têmis. / Logo se vê que tu não temes / Temístocles da Graça Aranha.
O bravo encarregado de negócios em Berlim era um feixe de
luz na escuridão do Itamaraty dos anos 1930. Brilharia ao lado do embaixador
Luiz Martins de Souza Dantas, cujo heroísmo salvou cerca de 800 pessoas —mais
da metade, judeus. Mas o racismo e o antissemitismo intoxicavam a chancelaria.
Para grande parte dos cônsules e embaixadores, havia uma
rede judaica de banqueiros, donos de jornais e marxistas a conspirar
mundialmente contra a civilização cristã.
Em documentos do Itamaraty, judeus eram descritos como “raça
inassimilável” no Brasil.
Tivesse prevalecido essa visão, três avós meus não teriam
deixado a Alemanha para encontrar a liberdade no Brasil. O texto que você
acabou de ler, bem como seu autor, não existiriam.
81 anos depois, honrar a memória das vítimas e dos que
desafiaram o nazifascismo segue como um dever inescapável.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e
mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações
internacionais pela Unesp.
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