sábado, 9 de novembro de 2019

Ruínas da história


Trinta anos após queda do muro, ameaça totalitária externa deu lugar à degradação interna

Trinta anos, parece ontem, mas nada é igual e, como diria Walter Benjamin interpretando o Angelus Novus de Paul Klee, "uma catástrofe única acumula incansavelmente ruínas de história, que se dispersam aos nossos pés".

As loucas esperanças do 9 de novembro de 1989, dia da queda do Muro de Berlim, estilhaçaram-se contra os muros invisíveis da multifacética crise europeia, da ascensão de Donald Trump, da restauração da "Grande Rússia", da ressurgência do fantasma do extremismo na Alemanha.

A Europa de 1989 extraiu da queda do Muro as políticas de avanço rumo à União Monetária e de expansão para o leste. A primeira desaguou numa catástrofe fiscal que quase destruiu a moeda comum. A conjugação da crise do euro, iniciada em 2010, com a crise dos refugiados, deflagrada em 2015 pela guerra síria, montou o cenário da emergência da direita nacionalista. Nem a Alemanha ficou imune à desestabilização dos sistemas políticos nacionais.

A ruptura do equilíbrio decorreu da ousada decisão de Angela Merkel, que abriu as portas do país a quase 1 milhão de refugiados, num gesto histórico de proteção dos direitos humanos.

As reações xenófobas deram origem ao Pegida, um movimento neonazista, e propiciaram o crescimento da Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido nacionalista que alcançou o terceiro lugar nas eleições federais de 2017. Os alicerces sociais dos dois encontram-se na antiga Alemanha Oriental.

O sucesso da expansão da União Europeia (UE) para o antigo bloco soviético mede-se pela forte elevação dos níveis de vida na República Tcheca, na Eslováquia, na Polônia e na Hungria. Mas, triste ironia: hoje, paradoxalmente, os governos populistas de três desses quatro países voltam-se contra os valores da UE que proporcionaram suas transições rumo à economia de mercado.

Da AfD alemã à Reunião Nacional francesa, do húngaro Viktor Orbán ao italiano Matteo Salvini, e deles aos fanáticos do Brexit, estende-se a sombra de uma "Internacional dos nacionalistas". Três décadas depois da grande festa em Berlim, a ameaça totalitária externa deu lugar à degradação interna: o retorno triunfante dos arautos da "nação de sangue".

À frente de uma cambaleante URSS, Mikhail Gorbatchov negociou com as potências ocidentais a dissolução do Pacto de Varsóvia. O líder russo Boris Ieltsin engajou-se em radicais reformas econômicas de mercado e acenou à cooperação com a Europa Ocidental e a Otan.

Contudo, um quarto de século depois, sob o regime grão-russo de Vladimir Putin, a Rússia anexou a Crimeia, mantém um enclave separatista na Ucrânia e moderniza suas forças armadas. Na raiz da reviravolta está o maior erro geopolítico cometido pelo Ocidente no outono do século 20.

No intercâmbio de 1990 entre EUA e URSS, o americano George H. Bush comprometeu-se a não incorporar à Aliança Atlântica os países do antigo bloco soviético. A promessa foi traída menos de dez anos depois.

Durante aquela década, o PIB russo declinou em cerca de 40%. A ideia de um "segundo Plano Marshall", destinado à transição russa, foi deixada de lado. No lugar da economia de mercado, a Rússia ergueu um capitalismo de Estado e reverteu a um sistema autoritário. A "Grande Rússia" de Putin tem uma economia de dimensões similares às da Espanha, mas arsenais nucleares capazes de impulsionar uma "segunda Guerra Fria".

De Truman a Kennedy, e dele a Reagan: o Muro de Berlim desabou graças às políticas internacionalistas conduzidas por presidentes americanos, democratas e republicanos, ao longo de quatro décadas. O consenso bipartidário foi rompido com o triunfo de Trump, um admirador de Putin que hostiliza a UE, estimula o Brexit e estreita laços com a "Internacional dos nacionalistas".

O anjo da história volta seus olhos para o passado e identifica, nesses 30 anos, uma "catástrofe única" que continua a se amontoar.

Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Há 81 anos, um brasileiro denunciava a barbárie nazista


Temístocles da Graça Aranha esteve na Kristallnacht

 “Sob o grosseiro pretexto de vingar a morte de um jovem secretário da embaixada alemã em Paris, os nazistas, dando mais uma prova das violências a que são capazes, investiram em massa, na madrugada de 10 (de novembro), contra todas as lojas pertencentes a judeus.”

Temístocles da Graça Aranha —o encarregado de negócios do Brasil em Berlim— havia acabado de testemunhar Kristallnacht, a Noite dos Cristais, que completa 81 anos. Seu relato confidencial ao Itamaraty, desde a primeira frase, não deixava dúvidas sobre a gravidade dos acontecimentos —nem sobre a posição de Graça Aranha diante da barbárie nazista.

No centro comercial de Kurfürstendamm, o diplomata nascido no Rio viu a depredação das lojas de judeus. “Policiais inertes assistiam ao espetáculo degradante com olhos benévolos e pareciam lastimar não participarem dos saques.”

Graça Aranha notava, ainda, o triunfo do império da mentira: Goebbels exaltava a reação “espontânea” da multidão, embora claramente se tratasse de uma operação coordenada do Partido Nazista.

Das 12 sinagogas de Berlim, três escaparam dos incêndios —não por piedade, relatou, mas porque o fogo ameaçaria casas vizinhas de nazistas. Bombeiros deixaram arder os templos religiosos, enquanto o “populacho” disputava símbolos judaicos como “troféus heroicos”.

“Milhões de pessoas gozavam bestialmente esse espetáculo único no século 20, numa das mais cultas capitais da Europa, que se ufana em ser um grande centro da inteligência do homem.” O nazismo tentava “sistematicamente destruir” qualquer resistência, explicava. Para Hannah Arendt, a Noite dos Cristais foi o marco inaugural do período totalitário nazista.

Antes, pensava-se que judeus viveriam —ainda que como cidadãos de segunda classe— na Alemanha. Kristallnacht revelou que o objetivo era, afinal, obliterar a presença judaica por onde reinasse o Terceiro Reich.

Pedestres passam por vitrine destruída após ataques
da Kristallnacht, em novembro de 1938 - 
Ann Ronan Picture Library/Photo12/AFP
      
Noite dos Cristais

Havia poucos “israelitas brasileiros” na Alemanha, mas Graça Aranha trabalhou para resguardá-los. Ele teria sido o primeiro chefe de missão em Berlim a solicitar, ao Ministério de Assuntos Estrangeiros, proteção a seus judeus nacionais. Consulados brasileiros no país receberam ordens suas para investigar a situação e cuidar de judeus com nacionalidade do Brasil.

Manuel Bandeira escreveria, anos depois, um poema ao amigo, “Temístocles da Graça Aranha”: A aranha morde. A graça arranha. / E vale o gládio nu de Têmis. / Logo se vê que tu não temes / Temístocles da Graça Aranha.

O bravo encarregado de negócios em Berlim era um feixe de luz na escuridão do Itamaraty dos anos 1930. Brilharia ao lado do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, cujo heroísmo salvou cerca de 800 pessoas —mais da metade, judeus. Mas o racismo e o antissemitismo intoxicavam a chancelaria.

Para grande parte dos cônsules e embaixadores, havia uma rede judaica de banqueiros, donos de jornais e marxistas a conspirar mundialmente contra a civilização cristã.

Em documentos do Itamaraty, judeus eram descritos como “raça inassimilável” no Brasil.

Tivesse prevalecido essa visão, três avós meus não teriam deixado a Alemanha para encontrar a liberdade no Brasil. O texto que você acabou de ler, bem como seu autor, não existiriam.

81 anos depois, honrar a memória das vítimas e dos que desafiaram o nazifascismo segue como um dever inescapável.

Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.


Queda do Muro, 30


Paira incerteza sobre Alemanha, esteio da UE, com saída de Merkel em 2021



A queda do Muro de Berlim, passados 30 anos a se completarem neste sábado (9), simboliza bem mais que a derrocada do socialismo no Leste Europeu. Ela marcou o ressurgimento de uma Alemanha grande e única, exorcizada porém do espectro expansionista e totalitário que encarnou na primeira metade do conturbado século 20.

A reunificação das duas nações começou sob o signo da liberdade e da paz. Antes de ruir a muralha erguida em 1961, ao longo de 1989 alemães-orientais fugiam da ditadura comunista para o Oeste ou tomavam igrejas e praças no Leste para gritar: “O povo somos nós”.

Foram as multidões da chamada Revolução Pacífica que romperam a fronteira, não a Alemanha Ocidental, os Aliados ou o capitalismo. Sem elas não se esburacaria a Cortina de Ferro nem haveria reunificação alemã em 11 meses, como disse à Folha Marianne Birthler, uma de suas líderes.

Outra mulher seria catapultada desse levante democrático para o palco central da história: Angela Merkel. A jovem física aderiu à União Democrata-Cristã do chanceler Helmut Kohl e ali ascendeu, saindo de sua sombra para tornar-se o esteio da União Europeia.

Chanceler desde 2005, quando a fase mais custosa da reunificação já se consumara, Merkel parece ter utilizado o melhor de sua formação híbrida entre Leste e Oeste para erguer a Alemanha como força de estabilização na Europa e no mundo do pós-Guerra Fria.

Cientista, abraçou a causa do clima e assumiu liderança nas negociações pela descarbonização. Solidária, enfrentou tentações xenófobas entre compatriotas.

Diplomática, mantém abertos canais de diálogo com Vladimir Putin e suas pretensões geopolíticas. Inflexível, liderou a defesa das regras da UE na crise do euro —em causa própria, pois a economia alemã depende crucialmente da exportação e, assim, da estabilidade monetária em seu maior mercado.

A bonança e a solidez da Alemanha, entretanto, hoje suscitam dúvidas. O crescimento econômico se aproxima de zero.

A própria Merkel anunciou que não concorrerá a chanceler na próxima eleição, em 2021. A sucessora pela CDU será Annegret Kramp-Karrenbauer, da qual não se sabe se reunirá condições para conter o crescimento da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD).

Após três décadas, começam a surgir trincas no imponente edifício da Alemanha reunificada.


domingo, 13 de outubro de 2019

Leviatã - Humanismo por inércia

MARCELO HESSEL
15.01.2015
29.06.2018

Nos três longas mais conhecidos do diretor russo Andrey Zvyagintsev, O Retorno (2003), Elena (2011) e Leviatã (Leviafan, 2014), histórias de provação moral ambientadas numa Rússia profunda, o fatalismo sempre limita o raio de ação de seus protagonistas, lesados pelas circunstâncias. São filmes que dão a impressão de que tudo na Rússia é profundo, cada um dos seus habitantes curvado pelo peso do velho império.

Leviatã é o mais ambicioso dos três, porque identifica opressores - o Estado, a Igreja - com a intenção de construir um painel do estado das coisas na Rússia hoje, em suas esferas pública e privada. Releitura do Livro de Jó da Bíblia, segue um pai de família que pede ajuda a um amigo advogado para impedir que o prefeito da cidadezinha costeira onde mora derrube sua casa. É o típico filme de "grandes temas" travestido de história íntima, e o sucesso do longa pelo mundo, de Cannes ao Globo de Ouro, prova que Zvyagintsev seguiu com competência a cartilha do denuncismo discreto e do realismo autoimportante, combinados com a única moda do circuito de festivais que nunca passará: o cinema de simbolismo.

Os símbolos em Leviatã, como as carcaças de baleia e os destroços de barcos, representam, mais do que um abandono, a morte do gigantismo sufocante da antiga URSS, que persiste em edificações que são derrubadas mas não são substituídas por objetos de um capitalismo impessoal, como na arquitetura selvagemente moderna de uma Xangai, e sim por novos representantes de um mesmo delírio de grandeza institucional. É a Rússia como um imenso mausoléu a ídolos mortos, que se multiplica em substituição a todas as coisas vivas.



Mas não há espaço para heróis, vivos ou mortos, no cinema de Zvyagintsev. O povo russo, cujo fardo de carregar a fábula do comunismo nas costas o cinema soviético soube retratar bem no passado, não é muito mais do que uma massa bovina em Leviatã, anestesiada por bebidas e santos, na ótica de seu diretor. Um povo que, de qualquer forma, não teria mesmo como reagir muito diferentemente ao olhar limitador de Zvyagintsev, que trata seus personagens como um coro de tragédia. Estamos no terreno das boas intenções e dos lamentos, do humanismo por inércia.

Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/leviata-critica

Outros links com comentários sobre o filme:

Leviatã - por Filippo Pitanga - 15 de janeiro de 2015 - http://almanaquevirtual.uol.com.br/leviata/